domingo, 13 de janeiro de 2013

Alcoolismo: tudo o que você preferia ignorar

Alcoolismo: tudo o que você preferia ignorar | ID #6

Nota do autor:  No consultório e entre amigos sempre noto um tipo de questionamento velado sobre o alcoolismo, de como começa, como identificar e como tratar. Sempre comentam de um conhecido, pai de amigo ou narram histórias que já ouviram falar. É dificil vê-los se perguntando honestamente sobre sua própria relação com o álcool.
Pensando nisso, resolvi escrever na coluna #ID sobre o assunto – mesmo sem uma pergunta de leitor como ponto de partida – abordando vários aspectos importantes dessa experiência que pode ser a de muitos, mesmo que ignorem ou desconheçam.
Sempre que pensamos num alcoólatra (hoje o termo é “alcoolista”), logo vem à mente a imagem clássica do tiozinho com barba mal-feita cambaleando pela rua com a garrafa de pinga pura, caindo na frente da calçada de casa vomitando, fazendo toda a vizinhança olhar com desprezo e vergonha para aquele vagabundo sem caráter, violento, que faz mal à família.
Nunca pensamos numa loira linda como a personagem da namoradinha deAlfie, o sedutor ou na delicada personagem de Meg Ryan no filme Quando um homem ama uma mulher. O bêbado é sempre o pai dos outros ou o garotão de balada que sai com o energético e vodka na mão. Ele está sempre bem longe e nunca dentro de casa.
Pelos trajes e perfil de sucesso, seria difícil apontar Don Draper como alcoólatra
A realidade não é bem essa. Não nos é tão nítido ou perceptível quando alguém passou da dose “moderada” e incidiu numa doença silenciosa, socialmente estimulada, que rende bons papos entre amigos e mata muitas pessoas direta e indiretamente – ainda que os dados estatísticos não consigam revelar a extensão e gravidade do assunto.
Todo mundo já ouviu uma história envolvendo álcool que não terminou bem. O problema é que ignoramos o fato de que a história não precisa culminar em morte ou paraplegia para ser uma tragédia.

Como saber que estou passando do ponto de “beber moderadamente”?

Todas as propagandas de bebida alcoólica estimulam os usuários a beber moderadamente. Ocorre que não fica muito claro exatamente qual seria esta medida. Muitos questionam, então, à partir de quando se pode diagnosticar o alcoolismo. Ou continuam bebendo, então, sem fazer a mínima ideia de que passaram do  ponto.
A Organização Mundial da Saúde alerta sobre o que é o razoável.
O consumo não pode superar o equivalente a três copos de chope ou apenas uma dose de uísque por dia. Para quem costuma beber diariamente mais de duas latas de cerveja ou duas doses de destilado, como uísque ou pinga, aqui vai um alerta: o nível de álcool presente nessas quantidades de bebida está acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), podendo causar danos ao organismo. De acordo com os especialistas, as pessoas saudáveis podem consumir, no máximo, 30 gramas de álcool por dia. “
Doses razoáveis. Mais do que isso começa a configurar algum tipo de dependência que pode ter sintomas declarados ou sutis. A questão é que muita gente perde a linha com menos que esse “razoável” e outras aguentam bem mais do que essa dose aconselhada.
Cada organismo reage de um jeito. Eu tenho um critério que uso para avaliar caso a caso, usando os seguintes marcadores.

Frequência

Alguém que toma bebida uma vez ao dia é alcoolista? E aquele que usa apenas uma vez por semana? Em ambos os casos, se ele faz isso com regularidade ininterrupta ao longo de 3 meses, sim.
Por isso, sempre peço para que a pessoa fique de 3 a 5 meses sem colocar uma gota de álcool na boca, para que ela perceba algum tipo de alteração substancial na sua rotina e humor como irritabilidade, descontrole dos impulsos (come, transa ou grita mais), tristezas súbitas e sem razão, mudança do sono (insônia ou sonolência), comportamento acuado ou retraído.
Normalmente a própria pessoa não consegue perceber essas mudanças, o que talvez torne mais efetivo perguntar para aqueles que estão à sua volta.
E, sim, podemos ter os alcoolistas constantes, ocasionais e de fim-de-semana. O que faz entrar na categoria é o fato de, na sua devida frequência, a bebida ser considerada “sagrada”.

Irrecusabilidade

O outro critério é o grau de controle que a pessoa tem sobre as quantidades. Ela se comprometeu a tomar uma dose e toma duas, disse que ia beber dia sim e dia não e toma todos os dias. Ela cria situações sociais com frequência e está sempre bebendo. Acha que aguenta sempre um pouco a mais e já não fica alterada com a mesma quantidade de bebida de antes.
Esses são indicadores sérios, afinal, se uma pessoa vai criando resistência ao álcool é um sinal de avanço da doença. Os adeptos ao álcool adoram dizer que podem beber a vontade que nunca vão cair ou dar vexame. Esses são os mais doentes.
Já notou aqueles mendigos que se alimentam de cachaça pura e nunca comem nada? Pois é, eles tem uma baita resistência. Isso não quer dizer nada, a não ser que estão para além do comprometimento alcoólico.

Seqüelas

Os efeitos do uso constante do álcool é visível em pelo menos 3 campos mais diagnosticáveis.
1. Físico: alteração no organismo e doenças decorrentes do alcoolismo que afetam o  sistema cardíaco, nervoso e gastrointestinal – fígado, pâncreas, estômago e intestino, só para citar os órgãos mais afetados.
2. Social: faltas e atraso no horário de trabalho, diminuição da produtividade pessoal, perdas de compromissos sociais, problemas de relacionamentos conjugais – agressão física, discussões – infrações no trânsito e acidentes caseiros.
3. Psicológica: alteração do sono/sexualidade/alimentação, mudança de comportamento, alterações de temperamento, ansiedade constante, perda de motivação global, distrabilidade (perda de atenção em atividades que exijam concentração), falta de rumo pessoal.

O autoengano

O grande problema é que a pessoa que transpôs o uso moderado e adentrou a zona do alcoolismo, em geral, não percebe quando isso aconteceu. Ela entende que se consegue manter a família, o trabalho e as contas pagas, está tudo ok. A pergunta é: em que condições isso é mantido? O sujeito que chega em casa e toma o uísque dele sem – na própria cabeça – perturbar ninguém, deveria ser condenado e chamado alcoolista?
Os adeptos do álcool vão dizer que é exagero afirmar que sim. Afinal, “bêbado é quem bate na mulher”.
Homens de família não cometem agressões
O álcool – como qualquer outra substância que altera o funcionamento do corpo e da mente – pode, no começo, causar muito prazer e nenhum desprazer, depois causar algum prazer e pouco desprazer, depois causar raro prazer e muito desprazer.
Nenhum dependente de álcool vai admitir que chegou nesse ponto. E o pior, em geral, ele próprio não está em condições de identificar isso.

Violência e álcool

O álcool é um dos co-responsáveis por grande parte dos crimes, pois em maior ou menor grau, está presente como coadjuvante nas tomadas de decisões criminosas.
Nos crimes passionais está quase sempre atuante como fator desencadeador da ação violenta. Nas vinganças e brigas de bar/balada fazem parte do gatilho impulsivo que transforma um simples desentendimento numa guerra.
Além disso, temos os crimes domésticos contra mulheres e crianças em que vemos o álcool como motivo de discussões e desinibidor de agressividades latentes entre casais, pais e filhos.
Os acidentes de trânsito com ou sem vítimas fatais quase sempre estão associados ao uso do álcool.

Cultura do álcool

O álcool sempre esteve presente em diversas culturas e não é na atualidade que ele celebra a roda de amigos ou a reunião de negócios. Até as tentativas de tornar o álcool ilegal fracassaram. Isso reflete o apelo que ele tem na vida cotidiana.
Vivemos num mundo mais enjaulado emocionalmente. Apesar da aparente liberdade de expressão que existe, a real comunicação, de coração para coração, não acontece tão naturalmente. Isso criou a ideia coletiva de que algum tipo de liberdade especial precisa ser mobilizada para que o sujeito se sinta plenamente feliz. Viagens, praias, amigos, pé na estrada, sexualidade sem tabus, enfim, tudo o que remeta a clichês sobre a sensação de ser dono do próprio nariz e senhor do próprio destino.
As empresas e os publicitários sabem como utilizar essas imagens para vender seus produtos. Associam a liberdade a pacotes turísticos, carros, comidas, álcool e outros tantos produtos que apontam como ingredientes para uma vida bem vivida.
Às vezes, alguém em pleno surto alcoólico vira herói
Assumir em público ou entre uma roda de amigos que não bebe é até considerado careta ou sinal de moralismo e chatice. Se duvidar, leia com atenção alguns comentários nesse texto.
Na nossa cultura, histórias de bêbados são contadas de forma engraçada e cheias de aventuras. Feliz é quem bebe. Se você não bebe (está implícito), corre o sério risco de se descobrir uma pessoa infeliz.
Ou seja, a associação felicidade-bebida em oposição a infelicidade-abstinência é forjada pela mídia e perpetuada sutilmente pelas pessoas.

O glamour de cada bebida

A cultura do álcool acaba associando as bebidas aos momentos distintos de descontração para induzir ao consumo de acordo com o público-alvo. Cervejas associadas com homens jovens, uísque com homens mais velhos, batidas de vodka para o público jovem em geral (mesmo tradicionalmente sendo dos mais velhos) e os vinhos como bebidas para casais românticos.
Baladas, jantares e happy hours são sempre regados a álcool. As pessoas falam das bebidas como se falassem de amigos queridos que não podem faltar em nenhum ambiente de descontração e paquera. O mais intrigante é ninguém questionar isso.
Por que a leveza, o riso e as paqueras estão sempre sendo intermediadas e facilitadas pelo uso de algum aditivo?
Se no começo uma pessoa bebia porque tinha vida social, do meio para a instalação do alcoolismo, ela tem vida social para beber.

Os adolescentes

A adolescência é a fase mais vulnerável da vida de uma pessoa. Quando já não se tem mais a presença constante dos pais, mas ainda não se tem uma identidade adulta que cria e fortalece a autoestima. Quando se procura uma tribo para se inserir, identificar e criar seu modo próprio de agir.
Nesta fase cria-se uma aversão por qualquer forma de autoridade e regra de vida que venha de pessoas que não são da sua idade. Os garotos com comportamento mais impositivos e as garotas mais carismáticas e sexy tornam-se mais populares e ditam as regras. São eles que decidem quem pertence ou não ao grupo.
Nessa luta por pertencimento – frequente em casos de estruturas familiares frágeis – adolescentes se submetem a qualquer tipo de código de conduta para sentir e mostrar que existem como seres independentes.
Se o álcool é um desses códigos, eles vão beber até cair para passar no ritual de aprovação. Quanto mais fortes forem para aguentar shots de tipos variados de bebidas, mais valor têm no grupo. Como nossa sociedade está carente de rituais de passagem legítimos, a bebedeira fecha de um jeito estranho essa lacuna importante do desenvolvimento social do jovem.
Se esse adolescente traz consigo problemas de autoafirmação, patologias prévias, comportamento compulsivo e genética desfavorável, a possibilidade de instalar-se o vício desde jovem será bem alta.

Homens bebem mais

O mito de que os homens bebem mais que as mulheres só é justificável pela massa física distinta entre os gêneros. Afinal, o metabolismo de um indivíduo maior dá conta de uma quantidade maior de álcool. Porém, o índice de alcoolismo vem crescendo no público feminino, que em geral toma bebidas mais adocicadas e equiparando-se aos homens.
Vejo apenas motivações diferentes nos gêneros. Os homens buscando projetar uma imagem socialmente mais poderosa, afugentar sua vulnerabilidade e buscar sua interioridade. E as mulheres usam o álcool como “remédio” para suas dores emocionais.

As fases, os animais e o cérebro com o álcool

Metáforas de animais quando se referindo a pessoas que bebem não estão muito longe da realidade. Ainda que dividam opiniões, são úteis para ilustrar como começa a se comportar o cérebro humano.
A principal e primeira área afetada do cérebro é o córtex frontal (quase na região da testa), responsável – entre tantas funções – por regular os nossos comportamentos sociais e o planejamento futuro. É ali que se concentram os registros de moralidade e noção de consequência.
Por isso, o macaco é considerado o primeiro animal da escala da embriaguez, já que a pessoa fica leve, divertida e desinibida.
Depois, o álcool atinge outras áreas cerebrais como as amígdalas, responsáveis por regular as emoções básicas. O leão e o cordeiro ilustram esta fase, já que a pessoa pode ficar destemida e briguenta (liberando impulsos agressivos reprimidos) ou mansa e chorosa (mais emotiva e amorosa).
Por fim, o porco, por ser a fase final em que todo o córtex é atingido e só permanecem as funções básicas do tronco cerebral que regulam estar ou não em pé, respiração e coordenação motora. Nessa hora o sujeito já está vomitando, entrando em colapso, coma alcoólico e caindo sujo onde estiver. É o apagão total.

Psicopatologias ocultas

Muitas pessoas desconhecem os problemas subliminares do alcoolismo, pois ele costuma ser consequência de psicopatologias pré-existentes que se agravam com seu uso e por isso criam um ciclo destrutivo. A pessoa bebe para não ficar deprimida e fica deprimida porque bebe. O álcool acaba sendo uma maneira ineficaz de automedicação para “ludibriar” os sintomas originais.
Os principais quadros associados ao alcoolismo são:
1. Transtornos de personalidade: transtornos que afetam o humor como quadros de narcisismo, histriônicos, borderline, obsessivos e esquiva.
2. Transtornos de humor: depressão, bipolaridade, distimia.
3. Psicoses: esquizofrenia.
4. Transtornos ansiosos: TOC, ansiedade generalizada, síndrome do pânico, ansiedade social.
Traduzindo, o álcool não cura estas patologias. Ao invés disso, as potencializa. Por esta razão, elas são tratadas em conjunto com médicos, psicólogos e grupos de apoio.
Como esses transtornos possuem componentes genéticos, o risco é ainda maior de sedimentar patologias que poderiam ficar hibernando por toda uma vida.

Psicologia do alcoolismo

O alcoolismo é um tipo de compulsão. Ou seja, a pessoa passa pelas fases de angústia seguida de aumento de tensão, uso do álcool, culpa, remissão e novo ciclo de angústia-tensão-álcool-culpa-remissão.
A pessoa pode já ter bebido muitas vezes e, se estava num estado emocional equilibrado, o álcool foi um distrator menor na sua dinâmica de personalidade. No entanto, se a fase é de baixa e falta de estabilidade, é aí que pode ser criada uma janela de oportunidade para que o alcoolismo se instale.
Então, aquele sujeito que nunca se viu dominado por uma necessidade compulsiva de beber começa a usar níveis cada vez maiores, mais frequentes e irrecusáveis de bebida. De repente, a trama está criada com consequências imprevisíveis na vida de uma pessoa.
Link Youtube
Eric Berne, psicólogo criador da Análise transacional e escritor do livro “Os jogos da vida” diz que não existe um alcoolismo, mas um papel de de alcoólatra que uma pessoa desempenha e que é alimentado inconscientemente por outras figuras. Segundo ele, existem 5 atuantes nesse jogo que podem pertencer a cinco pessoas ou a apenas duas que se revezam nos papéis.
1. Alcóolatra;
2. Perseguidor: cobra, persegue, humilha, costuma ser o parceiro(a) afetivo ou um dos pais;
3. Salvador: médico, terapeuta, amigo, sacerdote que vai tentar livrar o alcoólatra do vício;
4. Otário: aquele amigo que incentiva a bebedeira, paga a bebida ou a própria mãe que financia o filho por medo de que algo pior aconteça ou por fazer de conta que acredita na mentira contada para pedir o dinheiro.
5. O profissional: dono do bar/balada que dá o suprimento do álcool, mas sabe a hora de parar vender, até que o alcoólatra encontre outra fonte de álcool mais permissiva.
Em muitos casos, a mãe/esposa cumpre três dos cinco papéis. O papel 4, arrumando o filho/marido depois da bebedeira. Depois, o papel 2, cobrando e punindo. E, finalmente, o 3 tentando ser a pessoa bondosa que tenta salvar.
Com isso, acaba alimentando e realimentando essa dinâmica doentia onde é a ressaca o principal evento, já que é ali onde o alcoólatra vai em busca da redenção e do perdão. E faz as promessas acompanhadas de autopiedade e autoacusação.
Ele está sempre contando para os outros o quanto sofre e é perseguido por um mundo de pessoas que não o compreendem. É um jogo de desastre-redenção em que se busca um pai severo para dar palmadas em sua bunda. Uma maneira infantil de agir sobre uma vida sempre levada de forma inconsequente e cheia de acusações externas.
O domingo é o dia da ressaca, o sujeito vai reerguendo sua moral na segunda e terça-feira, começa os encontros sociais na quarta e quinta-feira, na sexta-feira já está na febre e o pico do sábado sem limites de semana em semana, sem que ninguém nota como esse indivíduo tão festiva pode ter algum problema sério. Pessoas que sorriem são vistas como felizes. Quem irá reparar no desastre oculto?
Aquela pessoa que era inibida se sente socialmente mais encorajada para paquerar ou demonstrar seus sentimentos de afeto e alegria. Se antes era bloqueada e apática se vê cheia de vivacidade e acaba alimentando esse ciclo de muleta psicológica que no meu entendimento é o principal mantenedor do alcoolismo, muito mais até do que a dependência física, que por si só já é explosiva. Não há palhaço sem um circo ou platéia, não há um bêbado dissociado de um mundo que superestima o álcool e uma família e parceiros amorosos que completam o espetáculo.
É como se todos estivessem na mesma trama de preguiça emocional. O alcoolista usa tanto a muleta que atrofia sua habilidade psicossocial que os outros também se envolvem num drama sem fim, nunca assumindo suas próprias dores, já que têm uma pessoa “tão doente” ao lado. A casa emocional de todos está em ruínas, mas a mais gritante é daquele que termina caído na sarjeta.
Acredito que uma vida genuína é aquela que consegue transcender os papéis típicos que giram em torno da tríade neurótica vítima-algoz-salvador para assumir um protagonismo consistente e transformador do mundo interno e externo.

Por que alimentamos essa cultura?

Eu respondo com outra pergunta: por que o álcool deveria perder o prestígio se ele causa tanta felicidade?
Entre numa roda de amigos que já estão alterados e as histórias são previsíveis: acontecimentos de outros carnavais “engraçados”. O amigo que perdeu a estação de trem porque estava bêbado, o outro que enfrentou o segurança da balada e saiu com olho roxo, a menina que não faz ideia de onde foi parar no celular, aquele que beijou muita mulher mas não lembra quais foram da metade da balada para frente, o sujeito que caiu da área VIP e arrebentou o cóccix.
Alguns copos depois e eles não lembram de onde surgiu a cabra
Nada grave, tudo diversão. E de história em história criamos a celebração do desastre como pico da alegria. Alguém tem que sair vitimado por algum tipo de agressão física, verbal ou social para render boas risadas.
Aqueles que se sentem excluídos acabam entrando na roda para ser o palhaço da vez e assim se sentirem inseridos no grupo daqueles que aguentam muita bebida na cabeça.
Se você não bebe, não é boa companhia e não vai criar histórias “uhuuuu!!! Loucura total mêo!”

A família

Como eu descrevi acima, todos fazem parte do jogo e realimentam o tormento do alcoolismo. Por esse motivo existem grupos de co-dependentes do álcool, pois todos acabam fazendo parte do drama e da doença.
Existem ganhos secundários para aqueles que estão envolvidos indiretamente com o álcool. Eles se sentem importantes (ao tentar ajudar) e diferentes do parente alcoolista (por não beberem). Com isso, fogem à própria tarefa de desenvolvimento pessoal enquanto são vistos como mártires de uma causa nobre ou acusadores que atacam mas com justiça, afinal de contas quem suportaria um bêbado em casa?
Se o dependente é um jovem, a mãe super-protetora se sente no seu papel eternamente e, sem o saber, realimenta essa loucura familiar já que sempre terá um filho pelo qual lutar e cuidar. Como expliquei em meu livro “Mães que amam demais” o cenário para essa mulher perceber a dependência emocional de seu filho alimentada pelo álcool não é fácil, mas é o ponto central de alavancagem para a solução do conflito.

Possíveis caminhos e soluções

Sempre vejo um tripé que pode amenizar qualquer tipo de problema psicológico: o suporte físico, psicológico e social.
O tratamento físico acontece com o suporte médico, com medicamentos que ajudem a aplacar os sintomas-sequelas da abstinência do alcoolismo, assim como as psicopatologias subjacentes ao vício. Além disso, práticas físicas e alimentação adequada ajudam a recuperar o quadro.
O tratamento psicológico pode ser feito com psicoterapia associada a práticas recreativas de lazer, trabalho voluntário, práticas meditativas e buscas espirituais.
O tratamento social é feito pelo dependente e seus familiares em grupos de apoio como o Alcoólicos Anônimos e os grupos de co-dependentes Al-Anon. Além disso o engajamento em grupos de amigos com dinâmicas mais positivas e comunidades religiosas (que fortalecem o indivíduo com buscas de autoconhecimento e pessoas com objetivos comuns).
Na maior parte dos casos, vejo que o desafio principal não é apenas parar de beber, mas encontrar uma função social significativa para o ex-dependente. É muito comum perceber que aqueles que se recuperaram agem como prisioneiros que foram soltos após muitos anos de carceragem. Ou seja, não sabem como agir quando não estão arranjando problemas, vivendo aventuras alcoólicas ou se redimindo de familiares ressentidos.
Como sempre buscaram a socialização com a ajuda do álcool, muitos precisam aprender a paquerar, trabalhar, aguentar as pressões da vida e sorrir de forma autônoma, sem aditivos. E muitos deles se descobrem solitários, mau humorados ou impregnados de autopiedade. E com um agravante: agora são diagnosticados como doentes.
Não gosto de tratar o alcoolismo como uma doença, mas como um jogo psicológico que tem raízes culturais, sociais, familiares e psicológicas, num mundo onde é só mais um dos inúmeros jogos que nos distraem do verdadeiro sentimento de intimidade emocional que tanto buscamos mas tememos.
Quando pudermos viver de um jeito em que o papel do campeão não seja necessário para sentir o direito de pertencer e ter dignidade psicológica e social, abriremos caminho para que não hajam pessoas que encarnem o script de perdedores, fracassados, degenerados.
O alcoolismo não se restringe ao álcool, mas a uma série de comportamentos, valores e visões de mundo que precisam do bode expiatório que pague um preço alto enquanto o restante do mundo permanece paralisado em suas vidas autocentradas, apontando o dedo para condenar, ou se calando e sentindo uma vergonha alheia inoperante.
O alcoolismo começa no falso modo em que encaramos a ideia de felicidade. É na mudança dessa visão cheia de miragens que a superação do problema começa de verdade.

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